Em 10 de março de 2013, subi num dos poucos aviões da então Lan Chile que nos levavam de Punta Arenas, no sul do Chile, às ilhas Malvinas, ou Falklands, como dizem os britânicos.
Não era apenas uma viagem pitoresca. A então presidente da Argentina, Cristina Kirchner, queria retomar a soberania daquelas terras e, pelo estilo nacionalista de seu governo, havia armado uma campanha que contrariou os moradores, por meio de um plebiscito.
Progressista mas anti-Kirchner, Sarlo embarcou na viagem por curiosidade. A autora, uma das maiores intelectuais da Argentina, morreu nesta última madrugada, aos 82 anos, após sofrer um AVC há semanas.
A ideia na ocasião era implementar um referendo, que acabou demonstrando que mais de 90% da população queria seguir sendo um Estado associado aos britânicos, e este foi o resultado.
Mas o caso é que o evento chamou a atenção tanto de meios estrangeiros, como o britânico John Carlin e eu, como de acadêmicos argentinos, como Sarlo, que defendia a livre determinação dos povos e pensava que algo mais deveria ser discutido ante aquele espectro político.
"Vê-se muito da Argentina aqui", disse Sarlo a esta repórter, pela paisagem inóspita parecida com a da Patagônia. Mas ela reconhecia "que essa gente que está aqui há mais de sete gerações deve ter direitos sobre a terra consolidada".
Sua obra multifacetada ia de análises de obras cinematográficas a livros de ficção e não ficção. Sempre "torcendo", ao final, para que a esquerda ganhasse, mas sem nunca abrir mão de seu espírito crítico.
Seu trabalho mais profundo expos as raízes cristãs da guerrilha urbana dos peronistas. Com o parceiro Carlos Altamirano, aprofundou-se na literatura do século 19 e na chamada geração de 1837 —fundamental para entender a Argentina de hoje.
Tinha o frescor, já avançada a idade, de seguir promovendo escritores jovens, como Selva Almada ou Hector Ronsino. Veio para a cidade brasileira de Paraty em 2015, elogiou nossa "falta de polarização", ou, pelo menos, a falta de uma polarização "com o fígado" como costumava dizer, que via na Argentina.
Quando as campanhas levavam a ouvir os peronistas, Sarlo se engajava com os jornalistas: "Ouça este, e não aquele, que este está muito comprometido". "Procure os peronistas de bairro, não os politiqueiros."
Não porque buscasse moderação, mas sim aqueles que, como ela, transitaram do maoísmo à luta democrática —era alguém que já não via um presente possível na luta armada que defendera no passado.
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São alguns os livros pelos quais ela deve ser lembrada, especialmente por "La Audacia y el Cálculo", obra em que desenhava as diferenças da Argentina de hoje e o que entendia por militância.
Sarlo exerceu uma atividade de crítica literária que manteve olhar severo sobre Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, nada menos, mas também Ricardo Piglia e certos escritores da nova geração, como Almada.
Era uma das poucas intelectuais que se podiam encontrar em campo, como em meio àquele conflito das Malvinas, e também conversando com caciques deslocados de sua terra natal e se manifestando por direitos em praça pública.
Apesar de ter produzido obras fundamentais da sociologia e da história, também tinha um olhar do cotidiano. É uma imensa perda para o pensamento argentino.