Na montagem de "Bonitinha, mas Ordinária" de Nelson Baskerville, as cabeças dos atores são cobertas com sacos plásticos, materializando as máscaras com que as pessoas escondem suas verdadeiras faces, metáfora querida por Neslon Rodrigues. O chão é forrado com raspas de borracha, que simbolizam o asfalto, e o mobiliário é feito de rodas de borracha.
Os cenários foram inspirados nas aglomerações de bolsonaristas em frente de quartéis, comuns especialmente entre 2022 e o ano seguinte. "É como se os manifestantes resolvessem fazer a peça com os recursos que eles tinham lá. Estou falando da aridez do pensamento, é um deserto de pneus", ele diz.
Baskerville, quando olha para Rodrigues, vê o purgatório —um como o descrito por Ítalo Calvino, que todas as pessoas formam juntas, sempre e desde já. Não à toa ele cruzou o dramaturgo com a "Divina Comédia" em seu "17 x Nelson", de 2005, e agora dá ares de limbo à sua "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária ou No Brasil Todo Mundo é Peixoto", em cartaz no Teatro de Contêiner Mungunzá, que ele ajudou a criar. "É um mundo distópico, prestes a explodir, eu reproduzo um inferno cotidiano", afirma.
Na peça, Edgar recebe de seu patrão, o milionário Heitor Werneck, a proposta de casar com Maria Cecília, sua caçula, rica, bonitinha, mas com um passado conturbado. Edgar não sabe se pede a mão da menina por dinheiro —como o Peixoto que entrou para o título desta versão, marido de outra filha de Werneck— ou fica com sua vizinha, Rita, de quem gosta mais. A trama gira em torno da escolha entre moralidade e dinheiro e questiona se todo mundo tem um preço.
Nem tudo é trevas. "Bonitinha" é um dos poucos textos rodrigueanos com finais felizes, os protagonistas da peça terminam acima da sujeira da cobiça que tenta tragá-los. Esse otimismo encontra eco na realidade para Baskerville, que enxerga uma luz nas reviravoltas recentes do país.
"A gente tentou fazer a comissão da verdade e ela foi defenestrada. De repente, um filme como 'Ainda Estou Aqui' vem e reacende a discussão, estão querendo prender o assassino do Rubens Paiva —e isso por causa de uma obra de arte."
Ele também vê com bons olhos os julgamentos dos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, data da invasão da Praça dos Três Poderes por apoiadores de Jair Bolsonaro inconformados com a vitória de Lula nas eleições do ano anterior. "Eu juro para você que há três anos eu nunca pensaria que nós teríamos generais do exército num banco de réus."
Como diretor, Baskerville se vê no dever de criar utopias. É só à primeira vista que ele cai em contradição com sua encenação distópica. "Acho que podemos ser otimistas quando admitimos as imperfeições, tentamos achar no meio deste inferno alguma dignidade humana. Nelson aponta um caminho, diz que nem tudo exatamente é inferno. E também fala que toda unanimidade é burra."
Para ele, Rodrigues é quem melhor desvendou a alma brasileira. Controverso, o escritor cultivava ideias conservadoras e chegou a apoiar a ditadura militar num primeiro momento, mas mudou de posição quando seu filho foi torturado pelo regime. Ao mesmo tempo, escrevia com despudor e satirizava a farsa do bom-mocismo do país.
"A gente tem por hábito imaginar um artista como um monólito que não muda, mas vemos uma evolução nele", diz Baskerville, contrário às tentativas de cancelar o dramaturgo por seus posicionamentos.
"Hoje está mais claro que o Nelson fala dessa máscara brasileira da pessoa cordial, educada, o falso moralista hipócrita surgiu como nunca nos últimos tempos. Está na hora deles se verem espelhados novamente na obra do Nelson."