Artista Anna Bella Geiger apresenta sua busca circular pelo centro em instalação

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No candomblé, para receber e celebrar os orixás, é preciso dançar, cantar e girar em torno do próprio eixo. Mas esta não é uma ação exclusiva das religiões de matriz africana. O ser humano, em diferentes processos ritualísticos de descoberta e transformação, cria rodas e se move em torno de um ponto ou de si para não se perder, dizem os psicanalistas, no seu próprio caos.

Esta referência identificada com um centro, essencial para a humanidade se organizar no nível social e psíquico, é o principal mote de "Circumambulatio" —andar em torno de, em latim—, instalação processual criada por Anna Bella Geiger em 1972, monta agora no MAC de São Paulo, e talvez de boa parte da obra da artista carioca. Uma das pioneiras da arte abstrata no Brasil, Geiger sempre questionou sua posição no planeta —como artista, mulher e brasileira. Criou gravuras, mapas, paisagens e autorretratos instigando reflexões sobre organização do mundo, a começar pelo próprio corpo.

Depois de alguns anos entre os representantes do abstracionismo informal ou lírico, Geiger começou a se interessar pelo corpo humano dando início a sua fase visceral. "Essa pesquisa nasceu dentro da própria abstração. Aos poucos percebi que as formas foram ganhando um movimento mole que me levavam ao corpo. Até que eu me deparei com uma publicação médica e me interessei pelo estômago."

Não parece à toa que seu primeiro órgão de estudo tenha sido justamente o que está no centro dos indivíduos. O estômago é responsável, segundo a medicina chinesa, pela digestão da vida e representante do elemento "terra" —símbolo, em diferentes culturas, da origem da humanidade. É, como na gira, o lugar da transformação e é a partir dele que Geiger começa uma espécie de mapeamento da nossa construção interna.

Ela também mergulha na estrutura social. Inspirada pelo marido Pedro Pinchas Geiger, a artista se envolveu pelos conceitos de geografia urbana, baseada nas ideias de centro e periferia, e passou a investigar propostas de fronteiras geopolíticas e conceitos elaborados em torno desse ponto de origem e referência a partir do qual as cidades se desenvolvem. O centro urbano é outro ponto vital para a humanidade.

"Comecei a ler os cahiers de geografia que o Pedro produzia e me encantei pelas diferentes maneiras de dividir o mundo, eram desenhos lindos baseados não só em aspectos naturais, mas sociais e históricos. Resolvi me aprofundar no sistema geográfico, estudar como o homem entende o mundo. As possibilidades do mapa-múndi que revelam intenções e distorções políticas e ideológicas", afirma.

Entre essas alterações, estava a própria ideia de Brasil e América Latina como subdesenvolvidos, representantes da periferia do mundo. Começa, então, a criar mapas deformados ou reorganizados, quase sempre com o Brasil em evidência. Por que não poderíamos ser, afinal, o centro do mundo?

Criada coletivamente com seus alunos do MAM do Rio de Janeiro, a instalação-processo "Circumambulatio", montada agora sob curadoria de Heloisa Espada, pode ser entendida como uma pesquisa teórica, visual e sonora reveladora dessa busca circular pelo centro que envolve e atravessa toda produção de Geiger.

Professora e pupilos se encontravam semanalmente, na paisagem desértica aos arredores da Lagoa de Marapendi, para criar desenhos na areia que fazem referências a alguns arquétipos da humanidade, retomando a ideia de origem.

Na época, Geiger lia Carl Jung movida pelo desejo de pesquisar padrões universais de comportamento, imagens e símbolos presentes no inconsciente coletivo da humanidade e, durante o processo de construção da obra, percebeu que muitas civilizações eram organizadas socialmente a partir de um centro. Paralelamente, nossa estabilidade psíquica também precisa de um ponto referencial central para não colapsar na essência caótica.

As ações efêmeras, de caráter abstrato e ritualístico, foram registradas pelo fotógrafo Thomas Lewinsohn. Eles usavam os próprios corpos, enxadas e um trator para criar as imagens presentes em 109 slides, acompanhados por anotações feitas pelos artistas a partir de uma extensa pesquisa sobre a ideia de centro.

Jung e o filósofo romeno Mircea Eliade são os autores mais citados, mas as investigações passam por referências nas artes, literatura, filosofia, história das religiões, antropologia, arquitetura e nas ciências naturais, além de incluir entrevistas feitas nas ruas do Rio de Janeiro. Entre esse turbilhão de informações, encontramos também reproduções de obras de arte —de Mondrian, Paul Klee e Miró—, plantas de cidades, fotos de arenas romanas e do Maracanã, além das primeiras imagens tiradas pelo homem na lua.

Parte dos textos foram gravados e intercalados ao que havia de mais experimental na música contemporânea –o trio inglês Emerson, Lake and Palmer, representante do rock progressivo, e a banda Can, pioneira do kraut rock alemão. "Esse caminho não vai em linha reta, é aparentemente cíclico. Um conhecimento mais preciso mostra que ele se eleva em espiral", anuncia uma das vozes na sala do museu.

Se hoje um dos principais conceitos da arte contemporânea é entender um tempo não linear, mas espiralar, livre do pensamento branco-ocidental, é interessante notar como Geiger está, desde os anos 1960, "andando em torno de", ou "circumambulatio", si mesma. "Não quero definir nada, o ponto é entender a mim mesma, buscar minha própria origem como brasileira". E neste movimento contínuo, ela gira no seu próprio eixo, como os médiuns dos terreiros, buscando encontrar-se.

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