Uma parlamentar como nunca se viu na história deste país, Erika Hilton é a primeira deputada federal negra e trans já eleita. Articulada e assertiva, foi a vereadora mais votada do país em 2020 e presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo por dois anos. Antes, foi co-deputada estadual em São Paulo eleita em um mandato coletivo, a Bancada Ativista do PSOL.
A deputada traz novidades à política brasileira tanto na forma como no conteúdo. Pop e fashionista, seus looks e longas madeixas loiras se destacam entre os ternos escuros que dominam, como uniformes, a atual Câmara dos Deputados, de maioria conservadora.
"Acho isso ótimo, desafiador e provocador. Incomoda, mas mobiliza, movimenta, engaja e chama a atenção daqueles grupos que eu acho que são importantes, como a juventude, a população negra e LGBT, para que olhem para a política com mais interesse e percebam que ela também pode e deve fazer parte da vida deles", afirma a deputada à Folha, que garante não ser este um plano político. "Esse visual é também quem eu sou, é a minha autenticidade no meu trabalho."
Em quase dois anos de mandato em Brasília, Erika se tornou líder da bancada PSOL-Rede na Casa e assinou a autoria de dezenas de projetos de lei e de cinco propostas de emenda à Constituição, chamadas de PEC.
"Eu me dei conta de que gostaria de fazer política fazendo a própria política. Porque eu me dei conta de que era necessário fazer política e de que mais vozes que representassem o conjunto da sociedade precisavam se colocar na disputa", afirma ela, que foi eleita pelo júri do Prêmio Todas na categoria Política Pública.
Conheça o Prêmio Todas
Distinção, idealizada pela iniciativa Todas, premia mulheres em oito áreas do conhecimento, divididas na categorias Ciência e Tecnologia, Cultura, Economia, Educação, Energia Limpa, Esporte, Política Pública e Saúde. Também foi escolhida a personalidade do ano. Ganhadoras foram eleitas a partir de júri composto por jornalistas, empresárias, ativistas, acadêmicas e membros do terceiro setor.
Esse processo, diz, é de "ruptura política com uma lógica de exclusão que é concretizada e perpetuada por uma presença histórica de homens brancos" nesses espaços de poder.
Durante muito tempo se pensou que eu, pela minha identidade e pela minha história, ficaria presa a pautas de gêneros. Mas nós extrapolamos esses debates. Tenho muito orgulho de ser parte de um mandato que propõe, pensa e idealiza propostas com essa pluralidade
"Eu me sinto convocada a romper com esse lugar, inclusive pela minha própria história. Mais do que gostar de fazer política —e gosto—, o importante é o papel que cumpro num cenário que representa um retrocesso nos direitos, uma não representação e um não olhar para as pautas."
Os projetos de lei de Erika são diversos. Tratam de saúde menstrual e informações sobre aborto legal, cidades resilientes às mudanças climáticas e aumento de pena para autores de incêndios ambientais. Passam ainda por medidas de enfrentamento ao trabalho análogo ao escravo e de empregabilidade para pessoas em situação de rua, além da retificação gratuita do nome de pessoas trans.
"Durante muito tempo se pensou que eu, pela minha identidade e pela minha história, ficaria presa a pautas de gêneros", diz a deputada. "Mas nós extrapolamos esses debates. Tenho muito orgulho de ser parte de um mandato que propõe, pensa e idealiza propostas com essa pluralidade."
Durante seu mandato como vereadora em São Paulo, propôs a criação do Fundo Municipal de Combate à Fome no contexto da pandemia de Covid, quando os números de insegurança alimentar explodiram na cidade (e no país). "Não tem como pensar em revolução, em democracia e em avanço de direitos se a gente não pensar em combater a miséria, a pobreza e a fome das pessoas", diz.
Entre suas propostas de emenda constitucional, a mais célebre trata da redução da jornada de trabalho 6X1. No lugar de um dia de descanso para cada seis dias de trabalho, a proposta da deputada, elaborada com o movimento Vida Além do Trabalho, é de 4x3, ou seja, quatro dias de trabalho para três de descanso. A PEC animou o debate político, especialmente no campo progressista.
Esse é um dos motores declarados da locomotiva Erika. "Conseguir pautar debates que são importantes e estratégicos para o enfrentamento das desigualdades e para a emancipação de determinadas populações na sociedade é maravilhoso, é potente e significa a transformação da sociedade, os avanços, a validação do processo democrático de direito."
Aos microfones da Câmara, a deputada fala sem rodeios. Em debates acalorados, Erika costuma se cercar da primeira pessoa do plural. Faz colocações argumentativas e contundentes, em discursos de fôlego impressionantes que ganham cortes de sucesso nas redes sociais e consagraram o bordão "Jamais tolerarei", já transformado em meme.
Foi assim que impôs respeito num jogo político agressivo ao mesmo tempo em que surpreendeu percepções presas a estigmas tipicamente associados às pessoas trans. Nascida em um lar evangélico de Franco da Rocha, na periferia de São Paulo, a deputada fala sobre família e sobre Deus. Chegou a pregar em igrejas, das quais herdou parte de sua técnica oratória. Hoje, na Câmara, denuncia o que chama de falsos profetas, que "usam o nome de Deus para pregar ódio e intolerância".
É uma história que Erika conhece bem. Depois de crescer num lar matriarcal amoroso, sem censuras à sua feminilidade, acabou nas ruas e na prostituição, aos 14 anos, depois que sua mãe mudou para uma igreja fundamentalista e entrou em choque com a identidade da filha.
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Anos depois, a mãe se arrependeu, trocou de igreja e trouxe Erika de volta para casa. A deputada retomou os estudos por meio do programa EJA (Educação de Jovens Adultos) antes de estudar pedagogia e gerontologia na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), no interior de São Paulo. Lá, fundou um cursinho pré-vestibular para pessoas trans e travestis no campus da USP (Universidade de São Paulo) que também fica em São Carlos, e entrou para o movimento estudantil a partir do qual migrou para a política partidária.
Erika avalia que a maior dificuldade que mulheres enfrentam no ambiente político é o que chama de machismo estrutural.
"Até recentemente não tinha banheiro feminino no Senado. Os homens são a grande maioria e ainda não compreendem com naturalidade a presença das mulheres no parlamento. Há práticas de tentar silenciar, diminuir e até assediar essas mulheres de alguma maneira", afirma.
"Outro desafio é conseguir colocar uma agenda feminina, e não necessariamente feminista, em curso num sistema político que sempre está mais preocupado com os interesses da sociedade patriarcal", decreta.
Chamada de presidenta pelos seus fãs, Erika flerta com essa projeção, para medo de uns e delírio de outros.
Numa de suas falas em plenário que viralizaram durante seus dois primeiros anos de mandato, ela diz a que veio: "Queiram vossas excelências ou não, terão de nos engolir porque chegamos aqui para representar a voz e o anseio de milhões de brasileiros que foram esquecidos, abandonados, apagados deste parlamento."
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