Meu pé estava gelado, eu não sabia direito onde me encontrava. Uma voz ao longe perguntava onde estava o carro. Aos poucos fui me dando conta do ambiente e percebi que estava na casa da minha mãe, numa das camas dos meus sobrinhos. Cama pequena, por isso meu pé estava para fora, gelado.
Carro? Onde. Eu. Tinha. Deixado. Pensar alguma coisa foi difícil, um processo leeento. Fui lembrando que na noite anterior eu tinha ido a uma festa com alguns amigos e que bebemos muito. Na euforia da embriaguez, quando nos demos conta de que o ambiente estava começando a ficar vazio e não tinha mais bebida, resolvemos emendar num bar qualquer. Mas não peguei o carro, quase que poderia jurar. E meio às nuvens de confusão que sobrevoavam a minha cabeça, lembrava com clareza da Tatiana chamando um Uber pra gente ir para a saideira.
Minha cabeça estava explodindo quando minha mãe entrou no quarto e me perguntou do carro de novo. Do carro dela, bem entendido. Levantei com dificuldade, rememorei com calma o que tinha acontecido na véspera e ainda meio trôpega liguei para a Tatiana. Ela confirmou: estávamos sem carro. Mas logo fui assaltada pela vaga lembrança de chegar na festa motorizada. Pensei muito e lembrei que tinha deixado o carro num estacionamento perto da festa. Imediatamente procurei o telefone do local e me disseram que o carro estava lá. Fui buscar na hora do almoço, quando já estava menos atordoada, e voltei para a casa da minha mãe, para entregar o carro.
Apagões são comuns em alcoólatras. Frequentemente passei por situações como essa do carro. E eu só fui descobrir o que era um apagão nos Alcoólicos Anônimos. Encontrei por acaso uma amiga de longa data em uma sala, eu não tinha a menor ideia de que ela bebia muito. E ela me contou que tinha decidido procurar o grupo depois de ter um apagão com o filho pequeno, e que isso era inadmissível. Naquela hora entendi muitas passagens da minha vida. Perguntei a um veterano de AA o que era um apagão e porque aquilo acontecia.
Não que eu não soubesse o que era não lembrar das coisas, isso me acontecia com frequência. Acontece que pra mim aquilo era normal. Que todo mundo que bebesse teria um apagão. Parece coisa de maluca, mas acho que o álcool entrou de um jeito em mim que eu não discernia muito bem mais as coisas.
Ficar no limbo da memória é péssimo. Já deixei inúmeras pessoas me esperando em diversos lugares porque simplesmente não lembrava que tinha marcado de encontrá-las. Eu decepcionei muita gente.
Acordei em lugares estranhos sem ter a mínima ideia do que estava fazendo ali. Eu conto e reconto tudo isso para reforçar o quanto é bom estar livre do álcool. Eu sou Alice, uma alcoólatra em recuperação, que hoje, só por hoje, não teve que ficar investigando o que fez. Eu me lembro de tudo o que fiz ontem, antes de ontem, na semana passada. Mas não foi sempre assim. Precisei passar por muitas situações constrangedoras para simplesmente mudar de vida.