Foi o próprio Caetano Veloso quem diagnosticou: o público que vai conferi-lo cantar com a irmã Maria Bethânia, na turnê que encerrará sua passagem por São Paulo nesta quarta (18), está no papo praticamente o tempo todo. Exceto numa parte.
"Essa é a única canção que não recebe aplausos entusiasmados", disse ele em entrevista à Folha. É quando se põe a cantar "Deus Cuida de Mim", um louvor do pastor Kleber Lucas, sempre com o aviso de que insistir nele é "uma maneira de eu expor o interesse que me despertam as igrejas evangélicas do Brasil".
"Isso não me surpreende", afirma Caetano sobre a indiferença da maior parte da audiência nessa hora. "Para a maioria do público que vai ver Bethânia comigo, o interesse pelo assunto ‘igrejas evangélicas’ não é algo esperado nem desejado. Mas eu sei que pode criar conversas que não costumam se dar."
Por ora, o momento costuma dar em muito pouco. A cena se repetiu nas diferentes capitais pelas quais a dupla passou —o gospel entra, buracos se abrem na plateia. Hora de fazer xixi, de reabastecer a cerveja. Alguns chegam a dizer alto, como se sentissem necessidade de marcar posição, que aquele naco do show é dispensável, nada a ver "essa fase crente" de Caetano. Tem quem ensaie vaiar.
Não saber a letra, até aí tudo bem. A música, uma velha conhecida dos evangélicos, nunca fez parte do repertório dos filhos de dona Canô. Mas o que se vê é uma reação que beira o desprezo. No sábado, na primeira das três apresentações programadas para a capital paulista, a Folha testemunhou gente lamentando a inclusão da faixa.
As raras pessoas que cantavam junto no entorno disseram ser evangélicas e estarem felizes, se sentindo representadas. Contava-se nos dedos quantas eram.
Algumas resenhas usaram o termo "deslocado" para descrever esse trecho da noite. Como um bloco que não se encaixa no Tetris. A questão é entender por que um Brasil que paga até R$ 600 para estar ali não quer conhecer este outro Brasil que, se frequenta o mesmo espaço, muitas vezes é para servir aos mesmos que desdenham da sua fé.
O problema nem é falar de religião em si, até porque elementos do sagrado se esparramam pelas duas horas de espetáculo. Caetano e Bethânia vão da "Fé" de Iza —"nunca foi sorte, irmão, sempre foi Deus"— aos "Milagres do Povo", aquela música em que "Xangô manda chamar Obatalá guia".
Caetano perambulou por diferentes religiosidades antes de se entender como ateu. Na meninice, ia à missa e não dormia sem rezar. Mais tarde, em Salvador, aproximou-se do candomblé e chegou a se iniciar como filho de Oxóssi na casa de Mãe Menininha do Gantois, poderosa mãe de santo da Bahia. Mas, como disse à Folha em 2011, amarelou na hora de receber seu orixá: "Eu não queria entrar em transe. Ficava com medo".
Dois de seus filhos se afeiçoaram na infância à Igreja Universal do Reino de Deus, por influência de uma babá. "Tom e Zeca encontraram um conforto na religião. Qualquer coisa que faça bem aos meus filhos faz bem para mim", disse Caetano ao jornal 13 anos atrás.
O artista também comentou à época sobre a ideia de um tropicalista gerar rebentos evangélicos. "Minha geração teve que romper com a religiosidade imposta, a deles teve que recuperar a religiosidade perdida."
Ao Fantástico, em 2022, respondeu por que quis gravar a parceria com Kleber Lucas. O ateísmo declarado anos atrás era o que parecia deslocado agora. "Eu acho que foi Deus. Realmente é a única coisa que eu posso responder. Eu não sou propriamente religioso. Fui criado em uma família católica com uma visão religiosa das coisas, mas depois me afastei muito. Você sabe, Kleber, que eu cheguei a ser assim antirreligioso. Na minha juventude, eu era antirreligioso, mas agora a única resposta que veio a minha cabeça da sua pergunta é ‘foi Deus’".
É o Deus dos evangélicos, hoje a religião do povão, que o fascina —não necessariamente no nível espiritual, mas com a inquietação intelectual de quem tenta compreender a fé que move as periferias brasileiras, praticada sobretudo por mulheres negras e pobres.
Kleber, o compositor do louvor, é um pastor progressista que se indispôs com líderes graúdos do evangelicalismo ao criticar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Muitas igrejas pararam de chamá-lo para cantar, vários pastores dispensaram sua pregação.
Conheceu Caetano e Paula Lavigne no segundo turno de 2022, num jantar a convite do casal. Kleber levou um vinho, os anfitriões abriram mais garrafas da adega, e a conversa se estendeu até o sol raiar.
Lá pela madrugada, o convidado dedilhou "Deus Cuida de Mim" no violão. Caetano tentou acompanhá-lo no próprio instrumento. Decidiram aí gravar uma versão em dupla do louvor.
A apatia da plateia com sua execução ao vivo tem como pano de fundo um cisma ideológico com notas de aporofobia. Evangélico virou sinônimo de atraso civilizacional em círculos progressistas.
A maioria do segmento se aliou ao conservadorismo bolsonarista? Sim, e é importante compreender por que essa base, que já votou em peso na esquerda, foi capturada pelo outro lado. Mas também é bom lembrar que generalizar um bloco tão plural não é só injusto. É sociologicamente burro e socialmente preconceituoso.
Caetano e Bethânia incluíram na turnê "Não Identificado", sobre a "canção de amor para gravar num disco voador". Os crentes, ovnis da vez, mereceriam um olhar mais amoroso de seu público.