Análise: Marisa Paredes foi musa do cinema pós-moderno de Pedro Almodóvar

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Para qualquer almodovariano de carteirinha, difícil escolher qual atriz do mundo do cineasta a gente mais ama. Mas, no panteão das leoas abusadas de Pedro Almodóvar, há sempre espaço para Marisa Paredes. A atriz morreu hoje, aos 78 anos, deixando atrás de si uma relação fulgurante com o cineasta, que lhe proporcionou nas telas seus melhores papeis.

Marisa é uma das atrizes de carreira mais longeva na obra de Almodóvar. Sua participação no universo do cineasta vai de 1983, em 'Maus Hábitos', a 2011, com 'A Pele que Habito'. De todas 'las chicas del montón', talvez só a saudosa Chus Lampreave e a sempre amiga Carmen Maura tenham aparecido tanto nos filmes do cineasta.

Paredes tinha o rosto quase tão anguloso como o de Rossy de Palma e a sensualidade madura como a de Cecilia Roth e Victoria Abril. Como comediante, se iguala a todas elas na capacidade de parecer verossímil dizendo os diálogos mais absurdos e nas situações mais inusitadas.

Se Paredes não se demarcou tanto como a irmã Esterco —sim, as outras eram a irmã Rata de Beco e a irmã Perdida— do filme sobre as freiras lésbicas e drogadas de 1983, o apogeu viria com Becky del Páramo, cantora espanhola exilada no México em 'De Salto Alto', lançado em 1991.

Como a mãe dura e rival da filha, a personagem Victoria Abril, Marisa injetou comédia num drama de escorrer pelas paredes baseado no filme-farol de Ingmar Bergman, 'Sonata de Outono', de 1978. O estilo agridoce do cineasta, entre o riso escrachado e o nó na garganta, contou com a sutileza de atuação de Paredes, que conseguia fazer piada com um peito de silicone e beijar o solo do palco com a mesma intensidade.

Nesse filme, Marisa dubla duas canções cantadas por Luz Casal, ícone da canção espanhola, dando-lhes intensidade performativa que era a marca das atrizes do cineasta. Depois, vieram a escritora em crise na criação e no casamento de 'A Flor do Meu Segredo', de 1995, filme que fez Almodóvar abraçar de vez o melodrama, e a atriz em decadência Huma Rojo, de 'Tudo Sobre Minha Mãe', de 1999, uma das obras-primas de Almodóvar.

De novo, cabe a Paredes um papel-citação, pois sua personagem é inspirada na Mabel de Gena Rowlands em 'Noite de Estreia', de John Cassavetes, atriz que presencia a morte de um fã. Mas as coincidências param aí. A mulher que começou a "fumar por culpa de Bette Davis e aos 12 já fumava com um caminhoneiro" –por isso escolheu nome artístico de Fumo Vermelho– é o epicentro da intriga que expôs a sororidade como poucos filmes na história do cinema.

De novo, Paredes sai do texto mais denso para a piada mais infame —"não deu pra ver muito meu catarro?"— quando revive Yerma, de García Lorca, na peça dentro do filme. A alternância dos estilos cômico e dramático era um traço de estilo da atriz.

Marisa Paredes ainda voltaria duas vezes ao universo almodovariano como uma aparição meteórica no sonho do personagem principal de 'Fale Com Ela' (2002), quando Caetano Veloso canta numa festa para amigos; e como a empregada de Antonio Banderas, mãe do tigrinho brasileiro em 'A Pele que Habito'.

Mas a carreira de Paredes não se resume à obra de Almodóvar, embora tenha sido catapultada para além das fronteiras da Espanha devido a sua colaboração estreita com o cineasta.

Atuando no cinema e na televisão desde os anos 1960, Marisa Paredes trabalhou com cineastas importantes como o chileno exilado na França, Raúl Ruiz em 'Três Vidas e uma Só Morte', de 1996, e com o mexicano Arturo Ripstein, em 'Vermelho Sangue', do mesmo ano, herdeiro direto da linhagem melodramática latino-americana que desaguou também em Almodóvar.

Marisa teve uma participação até com o cineasta português Manoel de Oliveira, que a dirigiu em algumas cenas como uma freira espanhola em 'Espelho Mágico' (2005).

No meio de tantas imagens da atriz que povoam o imaginário dos fãs de Almodóvar, a imagem dela que melhor resume a obra do cineasta é seu rosto estampado no imenso outdoor de 'Um Bonde Chamado Desejo', a peça que comenta a história do filme em 'Tudo Sobre Minha Mãe'.

Se Vivien Leigh foi a Blanche du Bois do período clássico, no cinema pós-moderno de Almodóvar, ela tem a cara tragicômica de Marisa Paredes.

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