Análise: Foto de Lula entre evangélicos é bonita, mas basta para criar pontes?

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Como podemos ler o aceno do presidente Lula (PT) a evangélicos, com a sanção de um projeto de lei que cria o Dia Nacional da Música Gospel?

O gesto é mais simbólico do que qualquer coisa. Na prática não muda a vida do fiel médio nem do seu pastor —não como, por exemplo, uma legislação para isentar igrejas de pagar tributos.

Mas sai bonito na foto. O retrato que Ricardo Stuckert, o fotógrafo oficial do petista, fez da cerimônia é cirúrgico para extirpar uma imagem que se multiplica feito tumor em círculos evangélicos —a de um presidente nem aí para as igrejas.

Nele, Lula aparece rodeado por mãos espalmadas para o ar. A bênção coletiva é conduzida pelo deputado Otoni de Paula (MDB-RJ), o mesmo que, em 2022, praguejou contra "Luladrão" na Câmara e disse que receberia "vagabundos" como militantes petistas "na bala".

Otoni é pastor do Ministério Madureira da Assembleia de Deus, sob guarida do clã Ferreira, conhecido por se adaptar ao governante da vez. O parlamentar, antes soldado aplicado da tropa de choque bolsonarista, aliou-se no Rio de Janeiro ao prefeito reeleito Eduardo Paes (PSD). Agora, é tratado como uma ponte possível entre a esquerda e os evangélicos —e mais eficaz do que a parceria com pastores progressistas, de presença ínfima na malha evangélica.

Talvez seja uma "ponte do rio que cai", chiste feito por um líder desconfiado das intenções fisiológicas que atribui a Otoni. Para os mais novos que não pegaram a referência: tal ponte fazia parte das Olimpíadas do Faustão, quadro no programa dominical que o apresentador Fausto Silva tinha na Globo. As pessoas tinham que atravessá-la, o que não era mole, dada sua instabilidade.

Também instável é a relação do PT com adeptos da religião que, se as projeções demográficas vingarem, deve ser maioria nacional dentro de alguns anos.

Pastores influentes passaram anos espinafrando o partido. Quando Lula chegou ao poder, e depois emplacou Dilma Rousseff sucessora, veio a conciliação.

A dupla petista levantou algumas bandeiras brancas para diluir ranços que os crentes pudessem remoer contra a esquerda. Lula sancionou o Dia Nacional da Marcha para Jesus e a Lei da Liberdade Religiosa, para garantir personalidade jurídica a igrejas, que deixaram de ser simples entidades de classe, como clubes de futebol.

Dilma também buscou agradar, como no aval para uma lei que permitiu incluir a música gospel na Lei Rouanet, em 2012.

Mas as diferenças não eram pequenas, sobretudo da agenda dos costumes. A onda de protestos em 2013 acabaria jogando várias cascas de banana para o campo progressista nos anos seguintes.

A eleição de Jair Bolsonaro (PL) esgarçou de vez um vínculo forjado mais por conveniência do que por afinidade ideológica. A volta de Lula ao Palácio do Planalto não bastou para que líderes evangélicos topassem de cara arranjos fisiológicos feitos no passado.

O próprio Otoni, se assopra ao reger a chuva de bênçãos em Lula, também morde. Diz à Folha achar "muito improvável" reproduzir com Lula o apoio que deu a Eduardo Paes. "Paes é um político tradicionalmente de centro, apesar de tentarem colocar nele esta marca de esquerda. Lula é de esquerda, de um partido cujas pautas sempre colidem com o que nós temos como princípios morais."

Há decerto muitas articulações políticas nos bastidores, e com interesses paralelos, até porque a eleição para a presidência da Câmara e do Senado vem aí. Nada que desmagnetize a carga alegórica de ver Lula cercado de crentes vestidos com uma camisa amarela onde se lê "Jesus transforma".

De certa forma, como reparou o cientista político Vinicius do Valle, tem um tanto nessa fotografia de "PT ajoelhando no milho", pagando penitência por tantos anos desconectado das igrejas. Outro passo foi redigir a Cartilha Evangélica: Diálogo nas Eleições, pregando atenção com o preconceito de sua militância contra os crentes —que, vale sempre lembrar, são em sua maioria mulheres negras e pobres.

Se vai convencer ou não, são cenas de um próximo capítulo. Esta novela vai longe.

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