A coroação de Fernanda Torres como melhor atriz na 82ª edição do Globo de Ouro, neste domingo, foi duplamente especial. Ela não só se tornou a primeira brasileira a triunfar na premiação, vingando sua mãe, Fernanda Montenegro, indicada há 25 anos por "Central do Brasil", como atingiu o feito em uma edição dominada por "lobas", como são chamadas nas redes sociais mulheres de meia-idade independentes e sem medo de expressar suas vontades.
O apelido aclamatório é um sintoma dos novos tempos, que se impõem frente a uma indústria que tem um histórico cruel em relação às mulheres. Quando jovens, elas podem ser violentadas em testes de sofá —como jogou no ventilador o movimento MeToo, em 2015— ou relegadas a papéis de uma amante ou femme fatale. Depois dos 40, arriscam o esquecimento e a rejeição.
Não por acaso, o momento mais emocionante da noite, além da vitória de Torres, foi o discurso de Demi Moore, eleita melhor atriz de comédia pelo seu trabalho hipnotizante no body horror "A Substância", neste caso bizarramente elucidador.
No filme, uma crítica voraz e fantasiosa ao machismo e etarismo, Moore vive uma relação de ódio com seu corpo após ser demitida de um programa de TV por ser considerada velha demais. Essa foi a sua primeira coroação em 45 anos de carreira, desabafou a eterna mocinha de "Ghost", depois de contar que certa vez foi definida como "atriz pipoca" por um produtor, e passou os últimos anos se corroendo por isso. Torres elogiou pessoalmente Moore pelo discurso, em um encontro caloroso entre as duas vencedoras ao final da cerimônia.
Mas, talvez, Hollywood tenha finalmente percebido que grandes narrativas protagonizadas por mulheres são atraentes, e praticamente todos os principais filmes dessa safra concentram-se em prestigiadas atrizes de meia-idade.
Na corrida com Torres estavam medalhões como Nicole Kidman, Tilda Swinton, Kate Winslet, Pamela Anderson e Angelina Jolie, e Karla Sofia Gascón ainda é a estrela de "Emilia Pérez", vencedor de melhor filme falado em língua não inglesa e forte concorrente ao Oscar.
Kidman foi ovacionada pela sua excitante performance no sensual "Babygirl", de Halina Rejin, em que é uma empresária e mãe de família que explora sua sexualidade ao se envolver com um rapaz mais jovem, com quem transa loucamente e experimenta fetiches sadomasoquistas.
Swinton vive Martha, uma ex-repórter de guerra com câncer terminal em "O Quarto ao Lado", de Pedro Almodóvar. Quando decide por fim a sua própria vida para não sofrer, ela relembra os erros e acertos de sua trajetória, vivida "como um homem", como ela própria define para explicar a priorização da sua carreira sobre a família.
Em uma toada parecida, Kate Winslet interpreta a fotojornalista de guerra Lee Miller no biográfico "Lee", dirigido por Ellen Kuras. Miller deixou de lado a carreira de modelo para retratar a Segunda Guerra na Vogue, revista de público majoritariamente feminino, em uma época em mulheres deveriam ler só sobre roupas e artigos de cozinha.
Já Pamela Anderson e Angelina Jolie encenam a decadência após carreiras brilhantes. Anderson é uma dançarina que precisa repensar seu futuro após ser forçada a encerrar 30 anos de apresentações em "The Last Showgirl", de Gia Coppola, e Jolie entra na pele da soprano icônica Maria Callas, que vive seus últimos anos entre o saudosismo e a loucura no longa de Pablo Larraín.
E, claro, Torres conquistou jornalistas e críticos mundo afora com sua interpretação austera e carregada de Eunice Paiva, em "Ainda Estou Aqui". De forma sutil, o filme mostra que Eunice era excluída das decisões familiares, tomadas por seu marido, Rubens, até que ele é sequestrado pela ditadura e ela precisa deixar a dor de lado para cuidar de cinco filhos e perseguir alguma justiça, se é que ela é possível.
Nem tudo é só ficção, já que cada uma dessas atrizes veste bem a pele de "loba". Kidman nunca se preocupou em aparecer nua nas telas e é uma das grandes produtoras de tramas com histórias femininas, Swinton fala abertamente sobre androginia, Gascón se tornou a primeira mulher transgênero a ser premiada em Cannes, Torres conquistou com seu carisma inabalável até a impenetrável plateia americana, e por aí vai.
Em comum, todas essas atrizes dão vida a personagens destemidas e, acima de tudo, realistas —elas têm defeitos e crises, podem ser agressivas ou egoístas, pragmáticas e sensuais. Seus corpos também envelhecem, sentem tesão, se machucam, adoecem, sujam de pólvora ou são trancafiados em celas escuras, clamando por liberdade.
"Quando uma mulher com mais de 50 anos é protagonista eles dizem que você está voltando, quando é um homem ele é par romântico da Sydney Sweeney", brincou Nikki Glaser, que apresentou o Globo de Ouro, depois do discurso de Moore, ao som dos risinhos cúmplices das indicadas.