Análise: Clarice entrevistadora sabia lançar isca e pescar o indizível dos famosos

há 1 mês 2

Entrevistar grandes personalidades, acostumadas a dar centenas de entrevistas ao longo da carreira, exige mais do que técnica jornalística. É preciso que a máscara forjada na vida pública pela celebridade que responde seja deixada de lado para escavar uma faísca de verdade, algo que seja revelado.

Clarice Lispector sabia lançar a isca em uma condução muito pessoal e radical da conversa para voltar com o indizível, como se pode ver na coletânea "Clarice Lispector Entrevista", que acaba de chegar em versão ampliada às livrarias.

A técnica de Clarice variava conforme a personalidade de cada entrevistado —alguns amigos até, como Tônia Carrero, Nélida Piñon e Hélio Pellegrino. A Nelson Rodrigues, a escritora avisa de antemão que deseja uma entrevista diferente e que entre as muitas facetas do dramaturgo, gostaria que ele revelasse apenas uma, a da verdade.

A Jorge Amado, ela ousa pedir que faça uma crítica dos próprios livros, o que o faz dizer que "são rudes, sem finuras, nem filigranas de beleza (...) são pobres de linguagem e muitíssima coisa mais". "São livros simples de um contador de histórias da Bahia."

Organizado pela professora britânica Claire Williams, chefe do Departamento de Literatura e Cultura Brasileira na Universidade de Oxford, o livro reúne 83 entrevistas, sendo 35 inéditas.

Quase todas foram escritas no formato pergunta e resposta, no jargão jornalístico conhecido como pingue-pongue, e produzidas paras as revistas Manchete e Fatos & Fotos: Gente, além das que estão no livro "De Corpo Inteiro".

A coletânea traça um painel cultural, esportivo e político do país através de expoentes da época —de Maysa e Tom Jobim, passando por Djanira e João Saldanha, até Oscar Niemeyer e Rubem Braga.

Dentre as que não foram publicadas na imprensa, estão a de Emerson Fittipaldi, feita numa ponte aérea quando Clarice, "por pura farra", perguntou se o piloto não poderia dar uma entrevista durante o voo.

O livro traz também a pauta datilografada por ela para uma entrevista não realizada com Carlos Lacerda, em que a escritora começa questionando se ele antipatizava com ela. Tudo porque na única vez em que se viram, em um jantar de gala na Embaixada do Brasil em Washington, Lacerda não lhe dirigiu uma única palavra, mesmo tendo se sentado ao seu lado.

Tudo a Ler

Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clássicos e curiosidades literárias

A coletânea revela que Clarice perseguia, assim como em sua literatura, as entrelinhas, ou seja, quando o dito e o não dito se tornam inseparáveis e criam novo sentido.

É como se ao entrevistar, ela usasse a pergunta e suas próprias confissões como isca. Desta forma, pescava algo distante de respostas padrão que celebridades, artistas, esportistas e políticos trazem na ponta da língua.

Entrevistadora e entrevistada ao mesmo tempo, Clarice fazia pequenas revelações sobre si ao formular as perguntas e muitas vezes recebia os entrevistados em seu próprio apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro. Temas clariceanos aparecem com frequência, com perguntas sobre amor, morte, solidão, fracasso, criação.

Se Clarice, uconsiderada uma figura enigmática, abria uma brecha para se revelar um pouco, o entrevistado terminava por ficar à vontade a ponto de aproveitar para matar a própria curiosidade sobre ela. A troca ocorre em geral com artistas e escritores, abrindo uma reveladora discussão sobre processo criativo.

O escritor Marques Rebelo quer saber se o conto "A Galinha" foi fruto de um trabalho enorme. Clarice responde que o escreveu em cerca de 40 minutos, "o tempo de bater uma máquina". Chico Buarque pergunta se a escritora, ao ter uma ideia para um romance, pode reduzi-lo a um conto. "Não é bem assim, mas se eu falar mais a entrevistada acaba sendo eu", diz e retoma a condução da entrevista.

No conjunto, a jornalista e a escritora Clarice se encontram e é possível conhecer mais não apenas sobre seus entrevistados, mas também sobre ela.

Ao encerrar a entrevista com Elis Regina, pega uma carona com a cantora, onde ficam ainda mais à vontade. Ela encerra o texto com suas impressões sobre uma das maiores estrelas do país, sem indiscrições.

"Infelizmente não posso transmitir a conversa, que me mostrou uma Elis Regina responsável, misteriosa nos seus sentimentos, delicada quanto aos sentimentos dos outros. Uma Elis Regina, enfim, que tem mais problemas do que o de ser acusada de mau coleguismo."

Clarice quer saber o íntimo, o âmago da coisa —o que é bem diferente de vida pessoal.

Em seu texto de apresentação, Claire Williams esclarece que fazer entrevistas eram também uma "tentativa de sobrevivência financeira". O fato de a literatura não ser a principal fonte de renda da maior parte dos escritores consta em vários dos diálogos.

Pergunta a Nelson Rodrigues em quantos empregos ele se mantém escrevendo. "Tenho três colunas diárias, obrigatórias (...) Quando vou escrever um romance ou uma peça, estou em plena estafa."

Zagallo conta que poucos jogadores atingem uma situação econômica que lhes garanta o futuro, ao que ela complementa que os escritores, com a exceção de Amado e Érico Verissimo, não podem se sustentar escrevendo livros.

Nas entrevistas, Clarice oferece uma percepção ampliada do diálogo entre as palavras e as não palavras que sua literatura tece. Parafraseando a escritora, já que se há de entrevistar e pagar boletos, "que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas".

Leia o artigo completo