Análise: Cid Moreira representou a cara conservadora do JN durante a ditadura

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Apresentador do Jornal Nacional por 27 anos, Cid Moreira morreu nesta quinta-feira, em Petrópolis. Tinha 97 anos. Segundo sua mulher, Fátima Sampaio Moreira, o locutor enfrentava problemas nos rins havia dois anos.

Com sua voz potente e grave, Cid Moreira representa a fase mais sisuda e conservadora do telejornal da Globo.

Em parceria com Hilton Gomes e Sérgio Chapelin, entre outros, o locutor apenas lia as notícias atrás da bancada, sem alterar o tom de voz ou comentá-las. Nem mesmo expressar sentimentos com o rosto, como um sorriso ou tristeza, era permitido. "Não cabia a informalidade", disse ele em uma entrevista a Amaury Jr.

O fato de a emissora ter apoiado a ditadura —e ele ter sido o locutor do JN no período mais duro do regime— levou muita gente a acreditar que Cid também fosse favorável ao governo militar, o que ele negava.

Em um documentário dedicado à sua trajetória, Cid se declara "apolítico", mas pede para esclarecer: "Eu lia o que estava escrito. Só chegava ali para ler. Não participava da edição. Eu não era editor; era apresentador."

Em sua biografia, também se exime de qualquer responsabilidade pelo tom do JN: "Nem elaboro os textos, nunca fui editor. Aos redatores, sim, devo os textos. E a eles cabe o discernimento e a capacidade intelectual. A mim cabe apenas colocar em prática o que mais gosto de fazer, que é dar vida, humanidade e emoção às palavras".

Da estreia do JN, em 1º de setembro de 1969, à despedida, no final de março de 1996, foram mais de 8.000 presenças na bancada. Neste período, Cid manteve-se sempre à sombra, sem dar opiniões polêmicas ou se envolver em confusões.

Sempre houve muita curiosidade sobre o que pensava, mas a leitura de "Boa Noite", sua biografia, publicada em 2010, mostra que a voz mais popular do telejornal era apenas isso, uma voz lendo notícias que mal parecia compreender.

A trajetória discreta de Cidão, como era chamado por colegas da Globo, registra apenas um desvio de rota. Em 1993, apareceu na capa da edição número 5 da revista Caras, ensaboado dentro de uma banheira, com as pernas abusadamente levantadas. Um escândalo, que ele classificou como "o momento de bobeira" da sua vida.

"O que eu tinha na minha cabeça naquele momento? Afinal, todo mundo me acha tão sério, tímido, como de fato sou, e fui cair numa cilada daquelas", conta no livro escrito por sua quarta mulher, a jornalista Fátima Sampaio Moreira

O locutor nunca deixou de cuidar da voz. Contava que mantinha o hábito de ficar com um pedaço de gengibre na boca. Após deixar o Jornal Nacional, Cid Moreira se dedicou por seis anos ao projeto de gravação integral da Bíblia. Tornou-se um campeão de vendas.

Mas a longa passagem pelo JN o marcou para sempre. Revelou que sonhava com o tempo em que foi apresentador do telejornal: "Até hoje tenho pesadelo. Sonho que a letra do [teleprompter] apagou".

Uma das grandes lendas sobre o locutor dizia que ele apresentava o JN com o paletó e gravata, mas de bermudas. Segundo contou a Serginho Groisman, no Altas Horas, isso só ocorreu uma vez, num dia em que chegou atrasado ao estúdio.

Vindo da serra fluminense, não teve tempo de se arrumar. "Mas eu tinha um paletó, uma camisa e uma gravata. O Léo Batista já estava sentado na bancada. E [a diretora] Alice Maria roendo as unhas. Terminei de dar o nó na gravata já no ar. Tenho pesadelo com isso até hoje", relatou.

Nascido em Taubaté, no interior de São Paulo, em 29 de setembro de 1927, fez carreira no rádio, por duas décadas, antes de se transferir para a televisão.

Clarice Saliby, diretora do documentário "Boa Noite", diz que Cid Moreira "habita o inconsciente brasileiro de uma forma tão peculiar" e acrescenta que ambicionou fazer "uma desconstrução dessa imagem quase mitológica" do seu protagonista.

Saliby descreve uma figura tão vaidosa quanto desinteressante. Uma pessoa sem nada de relevante para dizer, aparentemente incapaz de falar uma frase sem transmitir a impressão de que está narrando um telejornal.

No momento engraçado, Cid reencena um acidente doméstico, em que ficou preso dentro da sauna e teve medo de morrer. Após ver as cenas, pede para a diretora colocar uma música "mais dramática".

Cid também se recorda de um momento célebre, o direito de resposta obtido pelo então governador do Rio Leonel Brizola contra a Globo, lido por ele no JN, em 1994. É uma rara situação em que afirma ter tomado uma posição política. A favor da emissora: "Li de forma monocórdica, sem ênfase".

Em 1996, o então diretor de jornalismo da Globo, Evandro Carlos de Andrade, decidiu trocar os locutores do JN por jornalistas, como ocorria em outros telejornais. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, afirma em sua autobiografia que aprovou a medida. Mas faz críticas.

Boni afirma que sugeriu que Cid Moreira e Sérgio Chapelin fossem substituídos por William Bonner e Pedro Bial. Segundo Boni, Chapelin deveria ter sido mantido por algum tempo, para que ocorresse uma "transição suave".

Andrade não acatou nenhuma das duas sugestões. Fez a mudança dos apresentadores de uma só vez e escalou Bonner e Lilian Witte Fibe para o lugar de Cid e Chapelin. Segundo Boni, "a audiência despencou e o JN, mesmo se mantendo líder no horário, nunca mais registrou os números habituais".

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