Entre 1974 e 1986, o Alfa Romeo 2300 foi um dos automóveis mais caros e sofisticados produzidos no país, chegando a ser anunciado como um “importado fabricado no Brasil”. Mas o tempo não foi piedoso com o carro, que entrou em rápida decadência, sendo tratado como lixo na década de 90.
Por sorte, alguns Alfa 2300 foram bem conservados e sobreviveram para participar dos festejos de 50 anos de seu lançamento. O ponto alto foi a viagem “De volta ao berço”, até a fábrica da Fiat em Betim, onde o modelo passou a ser fabricado em 1978.
Foto de: Motor1 Brasil
Viagem dos Alfa 2300 de volta à fábrica em Betim, MG (Foto Walter Pereira Jr)
O evento da Confraria 2300 aconteceu entre os dias 28 de novembro e 1º de dezembro e reuniu 11 exemplares do Alfa nacional, além de outros modelos, com um total de 50 alfistas a bordo. O ponto de partida oficial foi São Paulo, mas houve entusiastas vindo de Florianópolis, Curitiba e até da Suíça — caso do cirurgião Axel Marx, um colecionador que já esteve por aqui outras vezes, interessado na história dos frutos brasileiros da marca do cuore.
No percurso, os viajantes passaram por Carmo da Mata (MG), onde visitaram o grande e variado Museu de Veículos e Relógios Antigos do colecionador Rubio Fernal. Depois da visita à Fiat em Betim, o grupo foi conhecer uma coleção de Alfa Romeo em Belo Horizonte.
“Nasci em 1972, meu pai comprou um Alfa 2300 em 1975 e vendeu o carro em 1988. Cresci dentro do Alfa. Como sou filho único, o carro era como um irmão pra mim! Aqueles quatro faróis mudaram a minha vida. Hoje, todas as minhas amizades são em função dos 2300. Fui a lugares e convivi com pessoas que não teria conhecido se não fossem os Alfa”, conta Marcelo Paolillo, um dos organizadores da caravana.
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Viagem dos Alfa 2300 de volta à fábrica em Betim (Foto Rogerio Machado) (7)
Entre ida e volta, os carros chegaram a rodar 3.200 km, no caso dos alfistas de Florianópolis, ou 1.600 km, para quem saiu de São Paulo. Apesar da idade dos carros (o 2300 mais recente já tem 38 anos de fabricação), não houve problemas mecânicos — os únicos imprevistos foram pneus furados. Prova da qualidade dos Alfa Romeo nacionais.
Um dos alfistas que participaram do evento foi Robson Cotta, engenheiro que trabalhou por 39 anos na Fiat em Betim, onde foi gerente de experimentação, trabalhando no desenvolvimento de novos modelos. Dono de um 2300 na exótica cor Violeta Guarujá, Cotta fala sobre o comportamento dinâmico do Alfa brasileiro:
“É um carro muito equilibrado, bom de curva, com direção precisa e muito gostoso de guiar. Com discos nas quatro rodas, tem freios muito eficientes. Em 1977, ano do meu carro, o 2300 ainda não tinha assistência hidráulica e exigia muque. Mas a direção já era muito precisa. O ar-condicionado é fortíssimo.”
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O motor de quatro cilindros e 2.310 cm³ era uma versão aumentada dos motores Alfa 1900 da década de 50. Rendia 140 cv (SAE) a 5.700 rpm, girava bem em alta, mas tinha pouco torque em baixa (eram 21 kgfm a 3.500 rpm). Tanto que, na Itália, faziam um seis-em-linha 2600 para os modelos maiores da marca.
Como o Alfa 2300 é um sedã pesado para os padrões da época (1.360 quilos), sair da imobilidade com o carro carregado não é lá muito animador.
Em compensação, o Alfa Romeo 2300 já trazia câmbio de cinco marchas, algo que nenhum concorrente tinha em 1974. Os faróis eram outro destaque: todos os quatro acendiam facho alto, iluminando muito bem a estrada à noite.
“O 2300 era a pura essência de um carro italiano, só que fabricado no Brasil, com um padrão que não tínhamos aqui nos anos 70. Por muito tempo foi um carro de vanguarda. Mesmo depois que deixou de ser fabricado, em 1986, muitos diretores da Fiat continuaram andando nos 2300 Ti. Até hoje, mais de 30 anos depois do fim da produção, esse carro me fascina”, diz Cotta.
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Viagem dos Alfa 2300 de volta à fábrica em Betim (Foto Rogerio Machado)
Donne e motori, gioie e dolori... O provérbio italiano ("Mulheres e motores, alegrias e tristezas") deve ter sido criado por um dono de Alfa Romeo. Em boa parte de seus 114 anos de existência, essa marca de automóveis tão excitantes quanto temperamentais esteve em nosso país, seja nas pistas ou em produção. Tivemos até carros e caminhões Alfa Romeo com alma italiana e um tempero bem brasileiro, servido pela Fábrica Nacional de Motores, em Xerém, no pé da serra de Petrópolis (RJ).
A Fábrica Nacional de Motores (FNM, popularmente chamada de Fenemê) era uma estatal que, em 1951, começou a construir no Brasil caminhões sob licença da Alfa Romeo. Alguns anos mais tarde, no entusiasmo da produção dos primeiros carros de passeio nacionais, foi decidido que a Fenemê também faria sedãs de luxo. Assim, nasceu o FNM-2000 modelo JK — o nome era uma homenagem ao então presidente Juscelino Kubitschek e o lançamento foi estrategicamente marcado para 21 de abril de 1960, dia da inauguração de Brasília.
Versão brasileira da Alfa Romeo Berlina 2000 italiana, o FNM JK estava anos-luz à frente do que havia na nascente indústria brasileira: tinha duplo comando de válvulas no cabeçote, câmbio todo sincronizado e com cinco marchas, conta-giros e pneus radiais.
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Viagem dos Alfa 2300 de volta à fábrica em Betim (Foto Rogerio Machado)
Eram caríssimos, a produção era pequena e tinha gente que esperava seis meses para receber o carro. Na prática, só ministros e militares de alta patente conseguiam comprar o sedã JK, usando seus contatos para furar a fila.
Veio o golpe de 1964, e Juscelino foi cassado. Mudaram o nome do carro para FNM 2000 (que depois virou FNM 2150). Em 1968, a FNM foi privatizada e seu controle acionário foi adquirido a troco de bala pela Alfa Romeo, então uma estatal italiana.
Em 1971, a Alfa Romeo começou a projetar para nosso mercado um modelo que não existia na Itália. O carro foi criado entre Milão e Xerém: sua parte externa lembrava muito a da moderna Alfetta italiana — só que em escala maior, para poder aproveitar boa parte do velho monobloco do FNM-JK. Não mexeram no entre-eixos de 2,72 m, e o comprimento total (4,69 m) era praticamente o mesmo do antecessor.
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Viagem dos Alfa 2300 de volta à fábrica em Betim (Foto Walter Pereira Jr)
O motor do FNM 2150 nacional ganhou um novo virabrequim com mais curso, aumentando a cilindrada para os 2.310 cm³. Um protótipo do sedã construído no Brasil foi enviado para a pista de testes de Balocco. O resultado foi o Alfa Romeo 2300, lançado em março de 1974 como um sedã sofisticado para quem queria algo mais europeu que os enormes Ford Galaxie.
Fabricado apenas no Brasil, o Alfa 2300 foi o primeiro carro nacional com freios a disco nas quatro rodas e ajuste de altura do volante. A fábrica recomendava que se usasse “gasolina azul” no motor, a de maior octanagem da época. Por isso, o sedã tinha um tanque para 100 litros, já que o combustível era difícil de ser encontrado em algumas regiões. Anos depois, com a proibição da abertura dos postos nos finais de semana, essa autonomia extra seria muito valorizada.
A lista de qualidades incluía a robusta suspensão herdada dos FNM e um excelente ar-condicionado (opcional). Em 1977, chegaram o 2300 B (com modificações internas e externas) e o superluxuoso 2300 Ti, notável pelo fato de ser o carro de série mais caro do Brasil na época, ultrapassando o preço do Ford Landau. O Ti, aliás, foi exportado para a Europa, rebatizado de Alfa Romeo Rio.
No mesmo ano, a Alfa Romeo do Brasil foi comprada pela Fiat (uma curiosidade é que, nove anos depois, o mesmo se repetiria na Itália). A linha de produção dos 2300 na histórica fábrica de Xerém foi transferida para as instalações da Fiat em Betim, novas em folha.
“Um grupo de funcionários da Fiat foi para Xerém e cada um trouxe a sua parte. Transferiram todas as máquinas e a linha de montagem, itens de chapa, motor, câmbio, tudo... Vieram do Rio inclusive os técnicos de engenharia da Alfa Romeo, chefiados pelo engenheiro Giancarlo Annoni. Os Alfa 2300 de 1978 já eram feitos em Betim”, lembra Cotta.
A Fiat se empenhou em melhorar a qualidade de construção do sedã. E continuou a evoluir o modelo ano a ano. Em 1981, o 2300 Ti foi transformado em Ti4. Na onda do Proálcool, veio a opção de motor a etanol. Em 1985, o carro passou por mais um facelift, ganhando nova grade, para-choques envolventes e lanternas traseiras maiores.
Mas, por mais que se tentasse disfarçar, os Alfa nacionais ainda tinham como base um modelo dos anos 50. Além disso, a produção era pequena, bem artesanal, e não devia dar retorno. Mesmo com tantas modificações ao longo dos anos, o sedã já estava envelhecido quando sua fabricação foi encerrada, em novembro de 1986. Na época, um Alfa custava o equivalente a dois Santana. Em 12 anos, foram produzidos aproximadamente 30 mil exemplares do 2300.
Com o fim da produção dos Alfa Romeo no país, começou a decadência. Revendidos a quem não tinha como bancar a cara manutenção, os Alfa nacionais deixaram as concessionárias e passaram a frequentar oficinas mais acostumadas a lidar com Fuscas. Não dava certo e a refinada mecânica reclamava. A lataria propensa à ferrugem e o consumo de 7 km/l também não ajudavam.
Assim, a cotação no mercado de usados foi desabando. Muitos 2300 morreram abandonados na rua. Poucos donos continuaram fiéis aos velhos Alfa, máquinas com certas manhas e melindres. Hoje, contudo, os sobreviventes são cultuados como objetos de desejo dos alfistas.