Acham que não ser ofendido por humor é um direito, diz Ricardo Araújo Pereira

há 23 horas 4

Diz-se que explicar a piada tira a graça dela. Ou, nas palavras de Ricardo Araújo Pereira: "Uma piada é como dissecar um sapo. Ninguém se diverte no processo e no fim o sapo morre".

O humorista português que é figurinha carimbada em seu país —ele é apresentador de um programa local de comédia líder de audiência e estrela de diversas campanhas publicitárias em terras lusas— desafia esse entendimento no livro "Coisa que Não Edifica Nem Destrói" que, baseado no podcast de mesmo nome, chega a essas bandas pela Tinta-da-China Brasil.

Ambas as obras se dedicam a investigar os elementos fundamentais do humor. Discutem, assim, a importância do silêncio e do ritmo para o funcionamento de uma piada; a incompreensão histórica da ironia; e a onipresença da escatologia no gênero, entre outros.

Tudo isso misturando referências à história medieval, literatura clássica, política contemporânea e cultura pop em uma linguagem tão acessível quanto provocadora. E sem deixar de fazer rir.

Questionado pela reportagem se, depois de ter gravado duas temporadas do podcast e escrito um livro só sobre o assunto, ele é capaz de definir o humor em uma frase, ele responde que sim.

"Costumo centrar-me na definição de riso que é importante para mim, para o meu ofício. Eu ordeno um conjunto de palavras e, quando eu acabo de as dizer, a plateia faz um barulho, que é a gargalhada. É produzir esse barulho que me interessa."

Mas ir além dessa definição mais simples é deparar-se com uma formulação necessariamente incompleta, diz Pereira.

Ele exemplifica. É possível dizer que a comédia alivia a tensão. E, de fato, piadas têm potencial para desarmar situações explosivas. Mas uma piada também pode, sozinha, guiar interações aparentemente harmônicas à violência.

Outro exemplo. A comédia pode ser um poderoso instrumento de sedução. Mas também pode estragar uma certa solenidade inerente ao romance.

Tudo a Ler

Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clássicos e curiosidades literárias

Esses não são os únicos paradoxos que Pereira explora no podcast e no livro. Um de seus argumentos mais instigantes é que, se por um lado há poucos fenômenos que foram tão cerceados quanto o riso ao longo da história, por outro, ele certamente não tem tanto poder quanto os que buscam censurá-lo.

"Me parece que nós não podemos ter outra posição que não seja uma destas: ou achamos que se pode rir de tudo, ou que não se pode rir de nada. Creio que, assim que abrimos uma exceção, não conseguimos sustentá-la", afirma Pereira.

"Normalmente, o que as pessoas dizem é que há certas coisas sobre as quais não é possível fazer humor. E essas coisas normalmente são o sagrado. O problema é que cada pessoa tem o seu sagrado. E eu já desempenho minha profissão há anos o suficiente para saber que em qualquer assunto é passível de haver alguém que levante o braço e diga: 'Não, sobre isso não'", completa, lembrando os emails indignados que uma colega sua recebeu ao fazer piada com o costume de alguns restaurantes de trazer a comida não em pratos, mas em bandejas.

"As pessoas, acho eu, estão convencidas de que têm o direito de não serem ofendidas. E creio que esse direito não existe. Até porque, se existisse, eu só hoje vi 17 coisas que me ofenderam, no trânsito, na televisão."

Um problema que parece ganhar proporções ainda maiores com as redes sociais, onde as pessoas parecem poder cercar-se do que acreditam e ignorar o restante —onde, afirma o humorista, as palavras tornam-se paródias delas mesmas.

Conteúdo, ele diz, tende a significar falta de conteúdo. Compartilhar é, na verdade, exibir. "Quando a gente partilha o jantar de ontem nas redes sociais, ninguém está a comer conosco".

Qual seria, então, a função social do humor nesse ambiente polarizado? "Fazer rir", responde ele.

"É um pouco bizarro que um animal como nós, que tem consciência da própria extinção, ria, não é? É como se imaginássemos que um condenado à morte vai da cela ao cadafalso a rir às gargalhadas", afirma Pereira. "E, no entanto, isso é uma boa metáfora para as nossas vidas."

Leia o artigo completo