A KTM vai quebrar de novo ou vai virar Indiana de vez?

há 1 mês 3

KTM Super Duke GT

A linda KTM 1390 Super Duke GT, estrela da marca laranja no EICMA 2024; 188cv e 14,8kgfm em apenas 213 kg – um sonho de muitos (Foto: Divulgação/KTM)

Há poucos dias a KTM, maior fabricante de motos da Europa, entrou com pedido de recuperação judicial (RJ) na Áustria. Esse foi mais um capítulo de uma triste história de declínio que se arrastava há alguns anos, no pós-pandemia. Qual deve ser o desenlace de tudo isso?

Originária de um grupo criado em 1934, que no pós-Segunda Guerra entrou fortemente no mercado das duas rodas, ela cresceu bastante e em 1992 sofreu sua primeira grande crise. Acabou nas mãos dos bancos credores em 1993 e foi comprada pelo Pierer Group AG, também da Áustria. Desde então, vivenciou uma jornada de crescimento acelerado, chegando a produzir 1 mil motos por dia. Além da KTM, o Pierer adquiriu a Husqvarna e a espanhola GasGas, entre outras operações.

Além disso, em 2020 adquiriu 25,1% da italiana MV Agusta. Aqui vale um parêntese: a Agusta tem um histórico acionário conturbado, mudando de mãos algumas vezes e se perdendo estrategicamente e na gestão. Este fato é uma pena, pois a marca considerada por muitos como sendo a “Ferrari” das motos, tem produtos que merecem, há tempos, uma gestão eficiente, profissional e dedicada.

Mas onde entram os indianos nesta história da KTM?

Em 2007, a Bajaj que é dona entre outros negócios da marca Zontes que está no Brasil com modelos de grande sucesso, comprou 14,5% da KTM, subindo para 48% em 2013. Em 2021, Bajaj e Pierer Group se acertaram e criaram uma holding para controlar os negócios conjuntos, a Pierer Bajaj AG: 49,9% para os indianos e 50,1% para os austríacos. Neste ecossistema de negócios entrou até a chinesa CFMotos com acordos de troca de tecnologia e outras sinergias operacionais.

Dito isto, fica claro o interesse do gigante indiano Bajaj na KTM e afins, mas até então com posição minoritária na holding. Guarde este ponto para a tese que criei para todo esse movimento desta semana.

Concessionária Bajaj

Linha de motos da Bajaj no Brasil (Foto: Reprodução/Instagram @bajajdobrasil)

Mas como uma marca líder e vencedora com a KTM chegou a este ponto?

Este é um tema interessante de se estudar. Sempre objeto de desejo de muitos, com seus produtos espetaculares e tecnicamente de alto nível, a empresa cresceu muito sob a administração do Pierer Group desde 1993. A pandemia, como para muitas empresas, foi um divisor de águas para a KTM. Os sinais eram assim (erroneamente) lidos internamente: uma demanda crescente e sem sinais de arrefecimento para os produtos KTM, o que os fez pisar no acelerador. Entretanto, com o fim da pandemia, o grande volume jogado no mercado não foi absorvido, ajudado pela inflação que corroeu o poder de compra do mundo todo e também por problemas de qualidade severos nos últimos 2 anos, fruto de uma rapidez para jogar novos produtos no mercado. Encurtar ciclo de desenvolvimento pode ser um tiro no pé, e a KTM não foi a primeira tampouco será a última a sentir um amargo na boca. Quem lembra do câmbio powershift da Ford?

Quem acompanha os releases de resultados da KTM sabe que os números estão ruins há um bom tempo. E as apresentações de resultado ao mercado de capitais seguiam trazendo notícias muito negativas que criavam os contornos de onde estamos hoje. Como exemplo, a dívida da empresa quase dobrou nos últimos 12 meses. Pura crônica de uma morte anunciada o atual capítulo. Decepção atrás de decepção fizeram o valor da ação cair muito, um sinal de perda de credibilidade do mercado. Nos últimos 12 meses, a ação caiu 86%…

Mas por que a KTM pediu uma RJ?

A empresa possui aproximadamente 250 milhões de euros em dívidas, contra um valor de mercado atual de apenas 450 milhões (soma de todas as ações x o preço baixo atual). Isso por si só é péssimo. Mas olhando o balanço, vemos que ela vem “queimando caixa” faz tempo, sinal de que não está conseguindo sustentar seu funcionamento. E quando olhamos mais atentamente seu balanço, notamos que a maior queima de caixa vem de operação deficitária e de altos investimentos realizados na empresa. Em outras palavras: não estão conseguindo ter “lucro” com a produção e venda de motos e investiram bastante para aumentar a capacidade produtiva. Isso fez com que produzissem muitas motos e não conseguissem vendê-las como esperavam. Com a receita caindo precisaram captar dinheiro fazendo dívida para continuar rodando a empresa. E aí mora o perigo. A alavancagem subiu muito (Dívida/Ebitda), provavelmente superando o famoso número “3”. Com isto, assim que este número fosse publicado ao mercado, os credores dos 250 milhões de euros de dívida provavelmente poderiam exigir o pagamento da dívida à vista. E isto quebraria de imediato a empresa, levando-a à falência.

Então a única saída foi pedir uma RJ, tentando postergar o pagamento das parcelas a vencer dos 250 milhões de euros para aliviar o caixa da empresa.

Mas então terão tempo para se reerguer?

Esta não é uma resposta tão simples de se ter. O plano de recuperação prevê uma série de medidas amargas na empresa, que ninguém tem certeza que serão suficientes. Elas reduzem despesas, mas não conseguem gerar receita, pois isso conta com a boa vontade e capacidade econômico-financeira dos consumidores de motos (nós, meros mortais). E muita gente, se já não estava a fim de comprar KTM por conta de problemas de qualidade recentes, fica mais receoso ainda, pois pensa: se os caras quebrarem, como fico? Minha moto desvaloriza e posso até não achar peça de reposição… Será que não é melhor pegar outra marca e esperar para ver como tudo isso fica?

Mas para mim há aspecto bem mais interessante que a eventual recuperação financeira em si, que é uma eventual mudança no controle acionário. E isso muda a “geopolítica” do mercado global das duas rodas.

Vamos explicar por partes.

A indiana Bajaj tem 49,9% e a Pierer Group tem 50,1% da holding. Esta holding tem, de importante, KTM, Husqvarna, GasGas e 50,1% da MV Agusta. São belíssimas marcas, não há dúvidas.

Eles compraram em nov/22, 25,1% da MV Agusta e tinham opção para aumentar a participação até o começo de 2026. Em março deste ano de 2024, anteciparam esta ação subindo a participação para 50,1%, adquirindo o controle acionário e já nomearam novo CEO para Agusta, prometendo mundos e fundos. Certamente houve desembolso consistente nestes dois eventos. Mas vamos lá. Uma RJ não acontece da noite para o dia. Em março deste ano, todo o mercado via dificuldades na operação da KTM. E certamente quem está dentro da operação já tem o sentimento 8 meses antes que uma RJ é inevitável.

Então a pergunta que fica é a seguinte: por que o Pierer Group, mesmo sabendo das dificuldades que estava atravessando, comprou o controle acionário da MV Agusta? Essa tentarei responder no fim desta matéria.

Um outro ponto a ser analisado é o seguinte: ok, o grupo colocou uma RJ e vai pedalar o pagamento dos 250 milhões de euro. Mas será que esta economia vai ser suficiente para rodar a empresa ou vai ser necessário trazer dinheiro de fora? Pelo fluxo de caixa operacional do balanço, entendo que vai ser preciso dinheiro novo. O caixa minguou e falta oxigênio ($$$). E dinheiro vem ou com dívida com investidor, com banco, trazendo sócio de fora que aporte euros no combalido caixa ou com o aporte dos donos atuais.

E é aí que tenho minha tese.

Mais dívida não vão conseguir fazer, pois ninguém vai emprestar dinheiro novo. Sócio de fora, difícil, pois entra sem controle acionário e fica refém dos atuais. Acho que o dinheiro vem de aporte dos atuais donos. Mas qual dos dois? Essa é a pergunta de milhões de dólares.

O Pierer Group, que tem 95% de suas receitas vindas da KTM, não deve estar nadando em dinheiro. Então não aposto minhas fichas neles.

Eu aposto as minhas fichas em um aporte vindo da Bajaj, que com isso fica com mais de 50% da holding e ganha o controle acionário de KTM, Husqvarna, GasGas e MV Agusta. A Bajaj tem “dry poder” como se diz no mercado financeiro, ou bala na agulha mesmo. E ter o controle acionário destas super marcas te dá poder de gestão, a começar pela indicação do CEO. Além de tudo, cairia como uma luva na estratégia de crescimento da vencedora empresa indiana, pois traria o toque de refinamento que cai bem para qualquer montadora não europeia. Seria uma repetição de um movimento já visto de indianos ou chineses adquirirem o “espólio” de europeus que não souberam administrar bem suas marcas e empresas. Não há poucos exemplos como esses por aí.

Bem, tentando responder a pergunta de por que eles compraram o controle da MV Agusta mesmo sabendo que estavam mal das pernas. Ninguém jamais saberá a verdade, mas eu tendo a acreditar que os indianos da Bajaj quiseram “dividir a conta” com os austríacos antes, pois sabiam que iam poder comprar o controle acionário da holding na RJ que estava no horizonte. Ou ainda para garantir a opção de compra, pois com uma RJ poderia haver uma cláusula que retirasse deles a opção de compra de mais 25% dos italianos para chegar nos bem-vindos 50,1% que te dão controle acionário e suas vantagens na gestão.

Enfim, é esperar para ver. Sempre torcendo pelo melhor para as marcas envolvidas, seus fornecedores, funcionários / famílias e os admiradores destas marcas maravilhosas.

E não esqueça nunca o nosso mantra: pilote sempre com responsabilidade. Mas jamais esqueça que o capacete ouve os demônios de tua cabeça, o escapamento grita o que tua garganta não consegue gritar, a suspensão aguenta os teus altos e baixos emocionais. E a moto te leva a lugares reais e imaginários que nenhum outro veículo te leva. E junto com os cachorros, ela é o melhor amigo do Homem, sempre.

Odoardo Carsughi é engenheiro mecânico formado pela Escola de Engenharia Mauá em 1991, com MBA pela USP em 2001. Iniciou a carreira em consultoria de gestão na Accenture e acumula 29 anos de experiência em empresas multinacionais e nacionais, passando por manufatura, bens de consumo, bancos, agro e saúde.

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